Programas de renegociamento de dívidas devem aliviar finanças dos brasileiros, mas falham em promover educação financeira

Em 17 de junho, o governo federal lançou o programa de renegociamento de dívidas Desenrola Brasil, em uma tentativa de limpar o nome de parte da população brasileira com dívidas acumuladas. Na segunda-feira, 24, também foi lançado o Renegocia!, que busca auxiliar endividados a regularizar débitos e buscar soluções para o pagamento de pendências financeiras, com ajuda das fundações de proteção e defesa do consumidor (Procon) municipais e estaduais de todo o país. O movimento de auxílio a inadimplentes também foi acompanhado por empresas do setor privado, como Casas Bahia, o Ponto (antigo Ponto Frio) e a Lojas Renner. As varejistas irão oferecer para clientes com contas em aberto opções de pagamento sem juros e multa, além de condições diferenciadas para renegociação de dívidas. Segundo especialistas ouvidos pela Jovem Pan, as iniciativas trazem aspectos positivos para o reequilíbrio da saúde financeira da população brasileira. Contudo, um aspecto que deixa a desejar em todas as medidas é o incentivo à educação financeira, essencial para que as pessoas não se envolvam em novas pendências.

O economista Claudio Felisoni, presidente do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo (Ibevar) e professor da FIA Business School, destaca que a situação de fragilidade financeira das famílias brasileiras está relacionada a uma situação excepcional: a crise da Covid-19 e seus efeitos secundários. Ela observa que a necessidade de mitigar os impactos exigiu a injeção de grande volume de recursos. “Essa quantidade de dinheiro de um lado e, a desorganização dos sistemas produtivos e de distribuição de outro, elevaram substancialmente os preços, ou seja, inflação. Esta, por sua vez, corrói o poder aquisitivo. É como se fosse um imposto, no sentido que diminui a capacidade dos indivíduos quitarem suas dívidas. Porém, é pior do que isso. A inflação não apenas se assemelha a um tributo, como também tem características de um imposto altamente regressivo. Em outras palavras, onera mais exatamente as faixas menos abastadas da população”, observa.

Ele cita o alto nível de inadimplência das famílias brasileiras e as tendências interruptas de alta neste movimento. “Certamente o programa amortecerá essa tendência. Entretanto, o maior desafio reside na segunda fase, quando a iniciativa contemplará o grupo dos mais frágeis financeiramente. Dada a excepcionalidade da situação, a medida tem de modo geral um efeito positivo. É bom ter em conta que quase 90% das pessoas endividadas tem faturas no cartão de crédito atrasadas, com altas taxas de juros. Portanto, a comunicação do programa precisa ter o cuidado em não passar a falsa ideia de superação do problema. O que é difícil tendo em vista o componente político. Na verdade, as condições objetivas são ainda críticas. Por exemplo, o maior controle das pressões sobre os preços vai levar à redução da taxa básica. Porém, como se sabe, esse movimento descendente leva em média nove meses para se refletir na ponta, se as demais condições permanecerem relativamente estáveis”, pondera.

Cuidados na hora de renegociar

Para Gabriela Castro, especialista em direito do consumidor do ALE Advogados, os programas de renegociação resolverão o problema de muitos consumidores que acumularam dívidas pela crise econômica anteriormente vivenciada. Contudo, ela observa que, para devedores recorrentes, poderá desencadear um acúmulo futuro de dívidas pela possibilidade de nova constituição de crédito, caso não sejam quitadas as parcelas do refinanciamento. “Na tentativa de resolver a questão, quanto ao possível acúmulo de dívidas pelos devedores recorrentes, foi disponibilizado um curso sobre educação financeira no portal Gov.br. O acesso não será obrigatório para os devedores que irão se beneficiar do programa. A medida não parece suficiente para solucionar a problemática apresentada. É necessária a implementação de políticas educacionais que visem uma conscientização a longo prazo da população quanto a sua gestão financeira”, pontua. Ela complementa que o Desenrola Brasil possui aspectos positivos, e a medida poderá, inclusive, trazer indícios técnicos que justifiquem a baixa da taxa de juros.

A consultora financeira e sócia da Prosperus Renata Cavalheiro analisa que todos os programas de renegociações de dívidas são bem-vindos e poderão deixar as festas de final de ano mais fartas. “No entanto, o consumidor precisa ter cautela para não passar o mês de janeiro de ressaca financeira. A renegociação de uma dívida não acaba com ela. Geralmente, a renegociação consiste em diminuição do valor das parcelas e o aumento na quantidade dessas parcelas. Essa diminuição no valor da parcela pode trazer a sensação de que temos dinheiro sobrando e levar a novos consumos e a novas parcelas. Isso pode virar uma bola de neve. Conhecer bem o seu orçamento doméstico e as fragilidades da sua receita mensal te possibilitará ter uma melhor compreensão dos impactos de uma parcela na sua saúde financeira, principalmente aquelas parcelas que podem durar muito tempo”, alerta.

Educador financeiro da Rico, Thiago Godoy alerta que, caso os programas não sejam bem-estruturados, podem criar incentivos para que os consumidores repitam padrões de endividamento irresponsável. “A renegociação de dívidas pode, sim, ajudar a minimizar os efeitos dos juros altos, permitindo que as pessoas possam pagar suas dívidas em uma condição mais favorável. Isso sem dúvida pode reduzir o risco de endividamento insustentável e a inadimplência contínua. Mas, se você não estruturar bem esses programas e eles não forem acompanhados de educação financeira, pode haver o risco de estimular o consumo irresponsável e gerar uma bola de neve de dívidas para alguns consumidores. O Desenrola Brasil tem esse viés de educação financeiro, o que é bastante positivo”, considera. Ele complementa que o impacto dos programas na economia vai depender da adesão dos consumidores e do efetivo sucesso na redução da inadimplência. Caso isso ocorra, haverá uma melhoria na confiança do mercado e no acesso ao crédito para a população.

Impactos no longo prazo 

Como impacto macroeconômico, o especialista em investimentos Ricardo Rodil avalia que há uma expectativa de que as condições de crédito melhorem gradualmente na economia, o que deve impulsionar tanto consumo quanto investimentos. “Em resumo, efeitos positivos, mas é preciso esclarecer que eles não serão derivados somente do programa Desenrola, mas dos seus efeitos somados às outras variáveis macroeconômicas, que parecem caminhar para um ambiente mais desanuviado. O estímulo à propensão marginal ao consumo é inegável. De modo geral, o estímulo ou propensão ao consumo seja, no que depende do programa Desenrola em si, relativamente limitado. Nas camadas de menos renda, os recursos eventualmente liberados serão aplicados em produtos daqueles chamados ‘de primeira necessidade’ e, nesse sentido, estarão muito mais voltados a um reequilíbrio do padrão de consumo do que a uma fúria consumista desenfreada”, pondera.

O economista Glerton Reis Junior, da LOGOS G.3, acredita que o programa Desenrola Brasil gerará um catalisador na demanda da economia brasileira na totalidade, pois tende a retirar do balcão de inadimplentes cerca de 30 milhões de pessoas. “O impacto será positivo, pois esse movimento globalizado na economia brasileira trará efeito de outras pessoas, com outras restrições que também terão a possibilidade de restabelecer seu crédito. Quanto às empresas, terão a melhora do seu fluxo caixa, em função da equalização de recebimento de seus clientes inadimplentes. Porém, o score rating não restabelece o crédito de imediato para o consumidor, pois o fato de não pertencer ao balcão de inadimplentes é apenas um dos fatores determinantes da equação que possibilita o acesso ao crédito. Outro aspecto importante é que a pessoa que aderir ao Desenrola Brasil tem a possibilidade de fazer um curso de educação financeira para ter um consumo mais consciente. Portanto, o Desenrola Brasil tende a melhorar a demanda no fim de ano, mas não deve estimular excessivamente o consumo”.

Claudio Felisoni complementa que, os programas associados à redução do ritmo inflacionário e suas consequências sobre a renda real das famílias podem levar à queda esperada da taxa básica. E a maior confiança vai levar a um crescimento das vendas neste ano.”O Ibevar e a FIA Business School estimam um aumento das vendas de 7,78% no terceiro trimestre de 2023 em relação ao mesmo trimestre de 2022 e de 1,32%, em relação ao segundo trimestre deste ano. Em relação aos últimos 12 meses, até setembro de 2023, projeta-se, neste momento, um aumento do consumo de 3,97%. Em relação aos programas, a questão da educação financeira está contemplada, porém é algo bem lateral. Esse é um aspecto primordial. Se a comunicação do programa der pouca atenção à educação financeira, preocupando-se essencialmente com o resultado político, será um voo de galinha”, pondera.

Fonte: Jovem Pan Read More