Celular na sala de aula atrapalha? Aparelho é benéfico para pesquisas, mas uso elevado compromete raciocínio
Na última semana, a Unesco, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) voltado para educação, ciência e cultura, divulgou um relatório abordando as consequências e os impactos do uso de celulares dentro das salas de aula. No documento, a agência afirma que o uso excessivo dos aparelhos pode prejudicar a capacidade de aprendizado dos jovens. Além dos impactos cognitivos nos jovens, a Unesco, na figura de seu diretor de Monitoramento, Manos Antoninis, alerta para o risco de vazamentos de dados envolvendo a tecnologia educacional, “já que apenas 16% dos países garantem a privacidade dos dados na educação por lei”. Segundo ele, diversos países não possuem uma legislação específica sobre o tema. De acordo com o documento, Brasil, Camboja, e México foram algumas das nações mais afetadas pela pandemia no âmbito da educação. Para solucionar o problema, a conexão das escolas à internet seria essencial, tendo como principal alvo os marginalizados pelo sistema. Além disso, a Unesco defende que os países desenvolvam suas próprias diretrizes para o uso de tecnologia como apoio à educação presencial, mas exalta a importância de descentralizar o processo, uma vez que diversas regiões do país possuem realidades socioeconômicas diferentes.
Em São Paulo, o uso do celular para fins pedagógicos está liberado desde 2017, quando o projeto de lei nº 860/2016 foi aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo, substituindo a regra anterior, que proibia os dispositivos. No entanto, em março deste ano, a Secretaria de Educação do Estado decidiu bloquear o uso de redes sociais pelos alunos. “Não há nenhuma restrição para análises, releituras, discussões e reflexões sobre as redes sociais e temas abordados nelas. O objetivo da medida é focar no desenvolvimento da aprendizagem de qualidade, sem que haja a dispersão para conteúdos considerados inapropriados”, explicou a pasta comandada por Renato Feder, em nota,
Em entrevista ao portal da Jovem Pan News, a professora da rede estadual de São Paulo Sibele Santos analisa que o uso do celular pode ser benéfico desde que limites sejam estabelecidos, destacando que as perdas acontecem quando os alunos não sabem separar os momentos de estudo e de lazer envolvendo os aparelhos. “Por algum tempo eles atrapalhavam bastante, mas hoje, com os recursos, podem ser ferramentas dentro da sala de aula, desde que fique claro que o uso do mesmo em sala seja destinado para fins pedagógicos. Quando se estabelece isso com os alunos, o proveito é melhor, traz mais benefícios a ambos. Usar o celular facilita em pesquisas, realizar atividades através de plataformas online, em determinadas áreas usar recursos de fotografia, vídeos e aplicativos para realizar atividades. A perda se dá quando o aluno utiliza o celular em sala para fazer o que já faz em seus momentos de lazer e isso o prejudica diante do cotidiano escolar”, diz Sibele.
Já para Gustavo (nome fictício), que atua como professor de História na Grande São Paulo, o uso elevado dos celulares tem afetado e até degenerado a capacidade cognitiva das crianças. Isso inclui as habilidades socioemocionais. Para o professor, os jovens não conseguem mais reproduzir raciocínios que não sejam esquemáticos. Além disso, o docente exalta que o celular tem muito potencial, mas a maneira como ele está sendo usado e como a internet se organizou hoje acabam prejudicando os jovens. “A questão não é questionar o potencial do celular, mas é questionar como que o celular está sendo usado e quais recursos que o celular apresenta que são utilizados pelos próprios alunos”, diz Gustavo, ressaltando que a internet é um “ambiente maléfico” e que as redes sociais minam a capacidade de atenção. A facilidade de ter informações e ferramentas como Google e, agora, o Chat GPT não colocam obstáculos, o que atrapalha no aprendizado.
Pandemia
Ao falar sobre os impactos da pandemia de Covid-19 no uso de aparelhos eletrônicos, Sibeli destaca que sentiu um aumento considerável na utilização por parte dos alunos. Para ela, a utilização dos celulares como “instrumento de fuga” no período dificultou o retorno à “era normal”. “O celular foi o objeto de fuga de muitos e vemos isso através dos aplicativos de vídeos virais, até eu usei para distração. Mas, quando se retorna ao presencial, foi muito difícil com que voltassem ao que ‘era normal’”, destaca Sibele. Já Gustavo pondera que a pandemia pode ter contribuído para os prejuízos relacionados, mas que não é possível atribuir a atual situação a uma “fatalidade” e ignorar um problema mais profundo. Culpar a pandemia seria “jogar tudo nas costas de uma fatalidade”, o que não é o ponto central sobre o uso de celulares em sala de aula e seus impactos. Ainda de acordo com o professor, a pandemia pode ter contribuído para um aumento nos impactos, mas não é a principal causa do problema.
Relação familiar
Gustavo também destaca a importância da relação familiar com as crianças e os impactos disso no aprendizado e no uso de celulares. Segundo ele, nas famílias em que os pais estão mais presentes, as crianças acabam tendo mais facilidades, enquanto, em outros cenários, nos quais os responsáveis não são presentes e o uso de celulares aumenta, o desempenho tende a cair. “Os pais trabalham o dia todo, não tem com quem deixar, ou então até tem uma babá. Mas a babá, é trabalhadora, não faz parte da família. Daí o moleque é criado pelo celular, é criado pela babá eletrônica. Os pais, para compensar, dão tudo que o moleque quer, né? Então se torna uma relação não mais afetiva, mas uma relação de compra e venda, de mercadoria. A gente vê exatamente que as famílias que são mais cuidadosas, que têm uma presença mais constante […] e que têm trabalhos mais intelectualizados, os alunos têm mais facilidade”, aponta o docente.
Atrasos em relação a outros países
Para Sibele, os atrasos na educação brasileira, no geral, não estão ligados ao uso de celulares, mas sim à condução das políticas públicas no Brasil. Segundo ela, a tecnologia deveria ser utilizada para beneficiar os alunos, mas os processos de digitalização devem prejudicar o ensino de maneira geral, já que o acesso à internet ainda é desigual no país. “A tecnologia tem que ser usada para benefícios, e não atrasos. O que atrasa a educação não está ligado com usar ou não celulares, mas, sim, as políticas educacionais aplicadas. Hoje temos uma política de plataformas e digitalização do ensino, mas nem todos têm o acesso igual. Isso, sim, vai atrasar em relação a outros países, que, apesar de usarem o celular, ainda mantêm livros, pesquisas, atividades que não são digitais, entre outros”, analisa a professora.
Fonte: Jovem Pan Read More